Coincidência(?)
Proparoxítona
Ninguém olhava. Ninguém via.
As duas estavam livres na madrugada.
Andavam de mãos dadas como nunca faziam. Beijavam-se embaixo da árvore. Deslizavam os dedos pelos cabelos uma da outra.
Ana estendia seu olhar tímido em direção à outra, que usava seu toque sólido no rosto pálida da primeira. O vento soprava, cândido, em seu cabelo róseo e curto.
Ela sorria, seus lábios tentadoramente brilhantes.
O movimento foi rápido. Os cabelos voaram chicoteando o rosto de Sofia enquanto ela levantava-se de um salto, puxando Ana.
Colocou firmemente a mão dela em seu ombro, e a sua na cintura dela. Modulou a voz, como fazia sempre, e entoou uma música tranquila.
Conduziu a dança. Rodopiou, aspirando a madrugada.
Seu canto era sônico.
A dança era trôpega.
Na boca, música (e beijo).
No coração, o ritmo (e o desejo).
(E) o amor.
Romântico.
(Texto para o desafio dos 3Ts, explorando o tema "Valsa na madrugada".)
Mafalda
Resumo: Dois lados da mesma Mafalda.
Ela era fashion. Usava óculos escuros enormes que combinavam com o formato arredondado de seu rosto. Calçava sapatos vermelhos e brilhantes, com fivelas e bico arredondado. Um pequeno salto. Não lanchara na faculdade nenhuma vez durante aquele mês, economizando o dinheiro que sua mãe lhe dava todo dia.
Conseguira a sandália e, apesar de passar fome, sua forma se manteve a mesma: gorda.
Assim como os óculos, suas roupas combinavam com o formato — dessa vez o do seu corpo. Em vez de um preto ou uma blusa de listras verticais, ela usava cores que realçavam suas outras belezas.
Usava calças com o cós na altura do umbigo. Era a moda. Prendia-as com um cinto. Às vezes largo e de tons pastéis, às vezes fino, verde limão.
Depilava as coxas que eram seu orgulho. Exibia a perna muito branca com shorts bufantes e vestidos curtos com elástico na bainha.
Seu cabelo era liso, castanho claro-claro com mechas douradas. Às vezes prendia a franja no topo da cabeça, em outras a deixava na testa, escovada, estilo Lily Allen.
Era jornalista, de nome Mafalda Albuquerque. Assinatura longa e bem-desenhada. Percorria os textos enviados pelos leitores com seus hábeis e treinados olhos verdes, escolhendo as opiniões que deviam entrar na edição da revista.
Ela não escrevia nada, porém. Era coisa que poucos sabiam. Ao chegar a casa ela, ao contrário do que muitos imaginavam, não apanhava sua máquina-de-escrever de estimação, punha-a no colo e começava a digitar ruidosamente uma nova matéria.
Não. Mafalda não acreditava em suas habilidades literárias, e essa era outra dessas informações que poucos tinham.
Mafalda se despia (de todo o jornalismo e fashionismo, inclusive) quando chegava a sua casa, e então vestia um vestido apertado de mais que mostrava as dobras de seu abdome.
Ela ligava a televisão na Globo para assistir a novela da seis e chorava com algumas cenas. Ela lembrava de suas próprias paixões perdidas, de seus amores não correspondidos. Ela não estava acima disso. O jeito que ele amava não era nem um pouco fashion.
Não, não, em casa ela não tinha nenhum estilo.
No silêncio da noite, ainda com as lágrimas a embaçar-lhe os olhos, Mafalda Albuquerque procurava distração ao remexer nas suas coisas.
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23h37min. Ela encontra uma caixa de música de cuja existência ela não sabia.
Ela dá corda e abre.
Ah, as contradições da vida e das pessoas. Ninguém iria imaginar que aquela jornalista que usava Gucci, calçava All Star, lia Meg Cabot, vestia Dolce & Gabbana e falava sobre a crise mundial seria capaz de sorrir com o som e de gostar de uma coisa empoeirada e antiga como aquela caixinha-de-música.
(Texto feito para o desafio dos 3Ts, explorando bem de leve o tema "Caixinha-de-música".)